segunda-feira, 11 de julho de 2022

AS CONFIADAS, DE MARILIA BONFIM, AINDA SOBRE A ARTE LOCAL NO MUNDO DO ENTRENIMENTO (João Veras 10/07/22)

  "Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa.” (Adorno/Horkheimer)

Se for para diferenciar alegoricamente, começo com duas cenas comuns a toda sexta-feira no Acre, por exemplo: estacionamento do shopping Via Verde farto e o Teatro de Arena do Sesc por um fio vazio.
Essa distinção, que revela o desinteresse do entrenimento pela arte local, talvez seja a razão da autonomia desta em relação àquele, mesmo que tal autonomia beire, como consequência, ao obscurantismo social. Nesse sentido, desgraçadamente, a ignorância planejada de um sobre o outro pode ser o motivo da liberdade da qual ainda goza o que se faz no lugar. Talvez, quem sabe.
Pois bem.
O entrenimento é um fake da arte. Como tal, não carrega consigo o que é próprio da arte, as suas potencialidades que são várias e diversas, profundas e complexas, belas e necessária e intrinsecamente incômodas.
O entrenimento enfeita tudo, por isso é raso, monolítico, simples, acomodado do tipo que acomoda a espera da espera sentadinha e calada no canto até desistir.
Falso, o entrenimento distrai. Mantém enquanto afunda a nossa cabeça fora do foco da vida da realidade do nosso lugar. Nos silencia, serve para invisibilizar o que acontece. Ele tenta de tudo para nos desviar do chão onde pisamos.
A arte requer atitude ativa, autoria, troca, diálogo. O entretenimento, passiva, consumidora, compradora, cliente, freguesa, usuária, otária.
A experiência artística é uma experiência pela qual somos nós que nos colocamos nela e não o contrário.
O entrenimento nos reduz à coisa. Estamos fora dele, mas, subsumido nele, assistindo, consumindo, comprando e desejando o que não se pode comprar.
O entrenimento nos aparelha, nos instrumentaliza de esfomeado sem fome, de consumidor sem vontade até a comprador sem dinheiro.
A arte é a nossa fome vital, enquanto o entrenimento sua geração artificial.
O entrenimento é um robô, numa só direção. A arte é gente em sua contradição, isto é, em suas cambalhotas de diversas rotas e vertentes.
O entretenimento não gosta do teatro, não gosta da música, não gosta do cinema, não gosta das artes plásticas, não gosta do romance e da poesia acreanas. Tudo que for local e não metrópole, sua central de onde vem. Ele ignora não sabe se existe e se souber não considera. Um colonizador pseudo estético, político, então, sempre.
O entrenimento só gosta de ficar bêbado no final de semana para dormir o que puder e acordar na segunda para o trabalho. De um tipo. De outro, ele descansa contando as notas de seus lucros.
O entrenimento não é mau, faz mal. Não é exatamente a antítese da arte mas o que tenta lhe abafar. É feito para passar o tempo, não a vida. Para imitar, não criar.
Arte não é entrenimento. A arte pode está no entrenimento, jamais se reduzir a ele. É beleza utilitária onde só é belo se útil como produto/mecanismo de poder e consumo.
Assistir As Confiadas, peça de teatro escrita, dirigida, produzida e estrelada pela atriz acreana Marilia Bonfim, nos possibilita sair do teatro pensando nessa diferença e logo tomando posição.
A arte resiste ante esse enfadonho entretenimento que tenta universalizar nas nossas as suas percepções, mas não consegue. Eu vi isso em As Confiadas.
Poderia falar muito sobre a peça, mas - me dirijo a você leitor - é muito melhor saber diretamente com os próprios sentidos. Requer o uso de todos. O teatro tem dessas coisas. É vivo ao vivo. Corpo a corpo. Mente a mente. Movimento a movimento. Mas adianto só uma pontinha dos meus:
Você encontrará um monólogo com uma atriz em intensas atuação/criação/entrega admiráveis em um raro momento cênico do teatro acreano numa montagem e dramaturgia próprias – como se diz autorais - dessas narrativas, ou contações de histórias, contextual e profundamente significativas, do tipo que o acreano Gregório Filho produz e ama.
Um registro lúdico e crítico das peripécias do mundo social a revelar os micros poderes estruturais e também inter pessoais praticados nos mercados e nas salas de aulas dos chamados interiores acreanos.
Uma versão das histórias dos comuns em contraposição às histórias oficiais das autoridades e celebridades. Narrativas que provém das histórias orais das mães, dos avós, por exemplos, a registrar a dor dos que não têm numa sociedade onde predomina a pose. Diante do trágico que é não ter como comprar carne para se alimentar e não poder se defender frente à força das violências tantas próprias das vidas humanas inexoráveis de quem – esse corpo social – tem sido mantido na condição colonizada em todas as suas dimensões.
Um documento de identidade da memória e da expressão do momento em ato contínuo de quem tem um lugar e uma arte para chamar de seus, enquanto e em face de um tal entrenimento, esse, dos tantos confiados, que espirra na tua cara sem virar o rosto, não aceitar o fato de que o covid mata e enche o tanque do carro com gasolina cara culpando o frentista.
A peça fica em cartaz no Teatro de Arena do Sesc ainda nos dias 15 e 16 deste mês, sempre às 20:00h, e tem a luz de Luiz Rabicó e como assistente de direção Dinho Gonçalves que também atua como músico junto com Mariana Bonfim, Silvia Rejane e José Neto.

Texto de João Veras.
https://web.facebook.com/joao.veras.5

Foto de Allen Ferraz Lins





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