segunda-feira, 11 de julho de 2022

LEPRAS: CRÔNICA DE UM MUNDO MUTILADO.

 

Esse trabalho solo de Dinho Gonçalves, com a assistência de direção de Marília Bonfim (Lepras: GPT, 2022), em cartaz no Teatro de Arena do Sesc, na cidade de Rio Branco -AC, me faz lembrar "Esperando Godot", do Irlandês Samuel Beckett, escrito e encenado após a Segunda Grande Guerra. Sim, há algo de comum entre a Hanseníase e a Guerra: ambas são tão antigas quanto a historia da humanidade, são provocadas ou incrementadas por Estados e causam a mutilação de corpos.
O Brasil só perde para a Índia em número de casos de Hanseníase, que acometem principalmente moradores de áreas sem saneamento básico, em torno de 30 mil casos anuais: uma média de 2500 casos por mês! Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, do total de vítimas civis, os 100 dias da guerra de Putin contra a Ucrânia já causaram 4169 mortos e 4892 feridos, cerca de 2821 vítimas por mês. Se incluíssemos as baixas de soldados, esse número cresceria exponencialmente.
Porém, como acontece com o número de leprosos, as vítimas das guerras também são omitidas pelos dados oficiais. Chefes de Estados e Generais costumam mentir sobre mortes e mutilações que acometem igualmente os que padecem dos males de Hansen e do males da Guerra: o povo empobrecido pelas políticas econômicas perversas que enriquecem poucos, em detrimento da maioria, de onde provém os doentes e os soldados.
Para abordar o Mal de Lázaro, a performance do protagonista é estruturada num cenário minimalista, quase vazio, sem a pirotecnia dos spots de luz, disponíveis no teatro de arena, mas pouco utilizados, como se o diretor quisesse dizer, parodiando o quadro surrealista "Isto não é um cachimbo" do pintor belga René Magritte: - isto não é um espetáculo!
O roteiro se desenvolve em círculos, encadeados pela narrativa histórica do desastre brasileiro na prevenção e tratamento da Hanseníase. O trabalho de ator é um exemplo de entrega, de expressão da dor do outro: se automutila para ser inteiro, se multiplica para ser uno, gargalha para ser triste e provoca riso contido e empatia no especta(dor), que permanece em compasso de espera da próxima cena.
A peça termina como se estivesse começando...e o público lá...ansioso, esperando o próximo ato para ver mais e mais novas figuras do leprosário e suas estórias. Mas o fim não termina e acaba puxando o fio do início do novelo trágico. Aprisionado nesse ciclo, o tempo se repete, o tempo coagulado de um mito chamado Brasil. O Brasil da dor acima de todos, à espera de Deus.
No entanto, o tempo da dor é cruel, é infinito, pois a dor simplesmente dói: a dor entrega a si mesma, enquanto não passa. E o que dizer da dor histórica? A dor da desesperança? É a espera de que nossas políticas públicas não sejam uma declaração de guerra aos empobrecidos; e de que o Estado de Direito não seja um mero teatro do absurdo.

Luis Satie

@LuisSatie Autor(a)

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